
A existência humana parece resistir à reflexão de sua própria decifração, criando um ciclo maior de enigmas, ainda que por força do acaso ou de suas próprias escolhas. À sua maneira, cada indivíduo experimenta o peso da vida, ainda que a mesma seja leve e insustentável. Esta renovação não nos permite estagnar o nosso saber, de modo que para vivermos com saúde, precisamos exercitar permanentemente o auto conhecimento.
Pensadores adoram discorrer sobre o eterno retorno de si mesmo; a alma e o corpo; a leveza e o peso, ainda que suas palavras sejam incompreendidas. Se as coisas nos aparecem sem o porque de terem sido criadas é porque neste mundo tudo é permitido e ao mesmo tempo perdoado. No século VI a.C. Parmênides disse que o universo esta dividido em pares de contrários, tal qual a leveza seria positiva e o peso negativo. Friedrich Nietzsche argumentava que a ideia do eterno retorno era o pior dos fardos. Mas, seria esse interminável processo de reencontro ao sofrimento um constante peso emocional? Não apresentaria o comportamento nostálgico certa leveza em seu próprio ato?

Para o romancista tcheco Milan Kundera, os extremos delimitam a fronteira além da qual a vida termina, e a paixão pelo extremismo, em arte como em política, é desejo de morte disfarçado. Não obstante, Kundera disse que para a maioria dos homens, viver significa ver e ressaltava a sua dupla limitação: a luz intensa, que cega, e a escuridão total (discordância daquilo que vê, a negação do que é visto, a recusa de ver). Kafka, outro grande escritor, aborda o mesmo tema neste belo aforismo: "A verdade é tudo aquilo que o homem precisa para viver, não pode ganhar nem comprar dos outros. Todo homem deve produzí-la sempre no seu íntimo, se não ele se arruína. Viver sem a verdade é impossível, mas não exagere o culto da verdade. Não há um único homem no mundo, que não tenha mentido e muitas vezes com razão". Destarte, como se vive, afinal, na verdade?

A vida humana só acontece uma vez e não poderemos jamais verificar qual seria a boa ou a má decisão, porque em todas as situações, só podemos decidir uma vez. Não nos é dada uma segunda, uma terceira, uma quarta vida para que possamos comparar decisões diferentes. Todos os raciocínios são apenas um jogo de hipóteses. A unicidade do "eu" se esconde exatamente no que o ser humano tem de inimaginável. Só podemos imaginar o que é idêntico em todos os seres, o que lhes é comum. O "eu" individual é o que se distingue do geral. Parece que existe no cérebro uma zona específica, que poderíamos chamar memória poética e que registra o que nos encantou, o que nos comoveu, o que dá beleza à nossa vida. Toda metáfora é perigosa. O amor começa no instante em que algo ou alguém se inscreve com uma palavra em nossa memória poética. A história é tão leve quanto a vida do indivíduo, como uma coisa que vai desaparecer amanhã. A diferença entre o otimista e o pessimista reside justamente na utopia de que há um amanhã. Que em uma das bifurcações a história humana é menos dolorosa e, em outra mais.

Como é estreita a margem dos dois pólos da existência humana. Platão dizia que o amor é o desejo dessa parte perdida de nós mesmos. Em alguns casos essa proximidade pode causar perca parcial ou total das dimensões da existência humana, gerando uma certa vertigem bio-psico-social. Para o filósofo Immanuel Kant, o ser humano não é um fim em si mesmo, mas um membro no reino dos membros - uma associação de seres racionais sob leis comuns à todos. Por seguinte, Kant defendia uma ordem da razão (imperativo) nesse reino/sistema que seriam três: "Age somente, segundo uma máxima tal, que possas querer ao mesmo tempo que se torne lei universal" (Imperativo Categórico); "Age como se a máxima de tua ação devesse tornar-se , por tua vontade, lei universal da natureza" (Imperativo Universal) e "Age de tal modo que possas usar a humanidade, tanto em tua pessoa como na de qualquer outro, sempre com um fim ao mesmo tempo e nunca apenas como um meio" (Imperativo Prático). Contudo quantas vezes, mesmo os que defendem a vida ou a vida humana não o fazem de maneira tão dogmática e intransigente que acabam por tratar os outros homens como apenas coisas?

Retomando Kundera, a merda (ignorância) é um problema teológico mais espinhoso que o mal. Se Deus deu liberdade ao homem, podemos admitir que ele não é o responsável pelos crimes da humanidade. Mas a responsabilidade pela merda cabe inteiramente àquele que criou o homem, e somente a ele... O alemão Leibniz através de sua obra Ensaio de teodiceia, justifica a existência de Deus a partir da problematização da aparição do mal e da bondade de Deus. Logo, qual seria então a teodiceia da merda (ignorância)? Pouco importa como ou por quem fomos criados. A crença de que o universo foi criado como devia ser e que o ser humano é bom pode ser a teodiceia da merda... A ideia de que o que não é bom seja negado e, o comportar-se como se a merda não existisse é denominado kitsch. Esse ideal estético de negação absoluta da merda, exclui do campo visual tudo o que a existência humana tem de inaceitável. Por fazer uso da sensibilidade, não é conveniente que a razão faça objeções, assim, faz do coração humano um sistema ditatorial. Perceba que esta ditadura implícita é o ideal estético de todo movimento político e, qualquer fraternidade entre todos os homens não poderá ter outra base senão o kitsch.
Numa sociedade onde coexistem diversas correntes e suas influências anulam ou limitam-se mutuamente, seria possível ao individuo não ser contaminado pelo kitsch e, assim salvar sua originalidade? Mas será que o próprio individuo intrinsecamente não carrega o kitsch? Todos nós temos necessidade de ser olhados. Seja por infinito olhares anônimos, fraternais, do ser amado ou olhares imaginários (o mais raro, tipico de quem é sonhador). Se o kitsch faz parte da condição humana, qual seria o fundamento do ser e, para que existe este acordo categórico com o kitsch? Para a vida pouco importa como ou por quem esse elo foi criado. Não podemos escapar dessa linha tênue entre o ser e o esquecimento. Coube a nós o equilíbrio desse reino/sistema, através das leis por ele criadas (leis naturais). Portanto, para vivermos com saúde devemos zelar pelo nosso organismo (racionalmente e intuitivamente), a fim de estar em harmonia consigo mesmo.
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